Casal de Belo Horizonte enfrentou dificuldades para conseguir a certidão de nascimento do filho recém-nascido, porque, inicialmente, o nome ‘Piiê’ não foi aceito pelo cartório nem pela Justiça. Piiê leva o nome de faraó do Egito
Arquivo pessoal
Um casal de Belo Horizonte enfrentou dificuldades para obter a certidão de nascimento do filho, porque, inicialmente, o nome “Piiê” não foi aceito pelo cartório nem pela Justiça. As instituições alegaram que, por causa da grafia, a criança poderia sofrer bullying no futuro.
Segundo a família do bebê, a escolha foi uma homenagem ao primeiro dos chamados “faraós negros” do Egito (leia mais abaixo). Os pais só conseguiram registrar o recém-nascido após recorrerem de uma decisão judicial.
“Resgatar nomes africanos é uma forma poderosa de dar uma nova narrativa para a história do povo preto. A gente tem o direito de educar o nosso filho com essa força, essa cultura e de uma forma que ele tenha uma representatividade no nome”, disse o pai, Danillo Prímola.
A história de Piiê
Ilustração representativa, feita por Inteligência Artificial, de Piiê
Ilustração/IA
Piiê, também grafado como Piye e chamado de Piankhi, foi um rei de Cuxe, uma região da Núbia que hoje corresponde ao norte do Sudão, aproximadamente entre os anos 753 e 723 a.C.
Segundo o arqueólogo José Roberto Pellini, professor adjunto do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele foi responsável pela reunificação do império e, apesar de controvérsias, é citado como um dos primeiros “faraós negros” do Egito (entenda abaixo).
“O período histórico em que ele estava vivendo é um momento em que o Egito está desarticulado. A importância histórica dele é muito grande, porque ele realmente traz esse momento de glória de novo ao Egito”, afirma.
Ao fim do Novo Império, quando o Egito estava unido e era um potência, os faraós começaram a perder poder, enquanto os nobres locais passaram a ter tanta autoridade e controle quanto eles.
“Começa aí um período que a gente chama de Período Intermediário, caracterizado justamente pelo enfraquecimento do poder central, das figuras dos faraós, e os nobres locais se colocando contra o império. Você acaba tendo várias pessoas se declarando faraós e reis em várias regiões”, explica Pellini.
Estela da Vitória, placa de granito que relata os feitos do faraó, está exposta no Museu Egípcio do Cairo
Reprodução
Com a fragmentação política, o território da Núbia, antes incorporado ao Egito durante as expansões imperiais, separou-se. O pai de Piiê, Cáchita, que à época governava a região, decidiu, então, iniciar uma empreitada para expandir a influência cuxita sobre os egípcios.
“Ao longo de 300 anos, essa população Núbia foi sendo aculturada, assumindo muito da cultura egípcia. O Egito, nesta época, tinha um vice-rei, o vice-rei da Núbia, que resolve fazer o processo de reunificação”, conta o arqueólogo.
Cáchita chegou até Tebas, capital do Antigo Egito, e fez um acordo com os sacerdotes locais para que a principal filha dele, Amenirdis I, assumisse o Templo de Amon. Esse acontecimento foi um momento chave na expansão dos núbios.
Após a morte do pai, Piiê assumiu o reinado. Ele foi novamente a Tebas, reafirmou o trato e continuou o processo de invasão do Egito, dando início à 25ª dinastia. Com dezenas de embarcações lotadas de guerreiros, dominou Mênfis e outras cidades ao longo do Rio Nilo.
Após conquistar a submissão dos soberanos egípcios, Piiê voltou ao reino de Cuxe e permaneceu na capital, Napata, onde foi enterrado. A “Estela da Vitória”, placa de granito que relata os feitos do faraó, atualmente está exposta no Museu Egípcio do Cairo.
Estela de Piiê em detalhes
Kenneth Garrett
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Primeiro faraó negro?
De acordo com José Roberto Pellini, não é possível dizer que Piiê foi o primeiro faraó negro sem perpetuar uma visão racista sobre o Egito.
“Essa ideia de que havia uma dinastia negra, que foi muito professada na egiptologia como um todo, faz parte de toda uma política racista que tentava ver o Egito — e ainda tenta — como fora da África e o egípcio como não negro, de pele não negra”, destaca.
O professor explica que, apesar de os egípcios fazerem distinções entre o próprio tom de pele nas representações iconográficas, eles reconheciam que tinham a cor mais parecida com a dos povos núbios.
“É muito claro, na bibliografia, que os egípcios não viam os núbios como negros ou como faraós negros, nunca fizeram essa distinção. Então, hoje, você afirmar categoricamente que o Piiê foi o primeiro faraó negro é errado, porque é muito provável que, a partir dessas classificações modernas de negro, de pardo e de branco, o Egito provavelmente teve outros faraós de pele preta. Então, bater nessa tecla é reforçar que o Egito não é africano, é reforçar que o Egito é esbranquiçado”, conclui.
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