Legislação proíbe ‘materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de construção hostis em espaços públicos com o objetivo de afastar pessoas em situação de rua’. Rio tem obstáculos em espaços públicos que dificultam o acesso da população de rua
A lei federal que proíbe estruturas hostis à população de rua nos espaços públicos completou 2 anos em dezembro. Mas a cidade do Rio até hoje não adotou medidas para fiscalizar e garantir o cumprimento dessa lei. Por toda a cidade, ainda é possível ver obstáculos que afastam as pessoas sem teto.
“Tem pedra, eu não posso nem pisar, machuca”, conta o morador de rua Paulino José de Lima.
No Rio, essas estruturas ficam em praças, embaixo de viadutos e nas calçadas.
“Muitas vezes as pessoas botam grade pra não ver ninguém, morador de rua, dormindo. Não importa se é mulher, mãe de família grávida, não importa se é uma criança”, fala o camelô Jucirlei França Moreira.
Um exemplo dessa arquitetura hostil fica em Laranjeiras, na Zona Sul, embaixo do viaduto que dá acesso ao Túnel Santa Bárbara. No local, existe um tapete de pedras enormes e pontiagudas.
Pedras pontiagudas são usadas em espaços públicos
Reprodução/TV Globo
Para quem circula de carro, esses detalhes podem passar despercebidos, mas, para quem vive nas ruas isso representa exclusão e abandono.
O motorista de ônibus Isaac Bahia Xavier tem 50 anos. Ele conta que perdeu o emprego, se separou da mulher e acabou sem casa. Passou a dormir na rua há 1 ano.
“A gente não escolhe estar na rua. Não somos criminosos, somos trabalhadores que estão precisando e buscando oportunidade. Por que essa hostilidade? Só queremos um pouquinho de compreensão, se colocar no lugar do próximo, né. Nós somos ser humanos”, fala.
O porteiro Gilson Oliveira, de 53 anos, também perdeu tudo há 8 anos depois de uma briga familiar. Ele mora no Largo do Machado, também na Zona Sul.
“Eles botam tapume. Uma vez a gente chegou pra dormir e começou a sair água pra todo lado.”
Gilson perdeu tudo após uma briga familiar
Reprodução/TV Globo
Em dezembro de 2022, foi criada a lei federal Padre Júlio Lancelotti. Regulamentada em 2023, a lei proíbe o uso de “materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de construção hostis em espaços públicos com o objetivo de afastar pessoas em situação de rua”.
Mas 2 anos depois, a Prefeitura do Rio ainda não implementou ações para garantir o cumprimento da lei.
A defensora pública do Núcleo de Direitos Humanos, Cristiane Xavier, diz que não existe fiscalização. Ela ressalta que essas estruturas não resolvem o problema.
“A cidade do Rio acaba adotando essas posturas de afastamento desse público considerado indesejado. Esse afastamento por si só não soluciona o problema ou os problemas, os fatores que envolvem esse crescente número da população em situação de rua.”
“É botar um empecilho de permanência e colocar essas pessoas no lugar de invisibilidade. É uma violência do Estado contra essa população”, fala a professora da UFF, Sônia Ferraz.
De acordo com o último censo feito pela Prefeitura do Rio em 2022, a cidade tem 7.865 pessoas vivendo nas ruas.
“Durante a pandemia, uma parcela grande de população na rua que não estava lá antes. Pessoas que foram expulsas porque perderam emprego, não podiam pagar aluguel”, diz Sônia.
O déficit habitacional na Região Metropolitana do Rio ultrapassa 400 mil moradias, segundo levantamento da Secretaria Nacional de Habitação em parceria com a Fundação João Pinheiro. Mas não falta só isso.
“É uma pirâmide, onde nós precisamos investir numa educação, onde nós precisamos ver uma economia. Tirar da rua para colocar em locais mal realizados, mal equipados, provisórios, da mesma forma para deitar no asfalto quente, isso não é política”, fala a defensora pública.
Léo Motta é ex-morador de rua. Ele passou 1 ano e 3 meses dormindo nas ruas. Hoje, corta cabelos numa ação social e é autor de três livros. No último “Há vida depois das marquises”, ele retrata a exclusão de quem não tem teto.
“Pra mim, que um dia deitei nessas calçadas aqui, sonho em encontrar a rua do respeito.”
“O único local que às vezes você encontra um pouco de paz é próximo às lixeiras, ali ninguém vai te perturbar”, fala Isaac.
Isaac perdeu o emprego, se separou da mulher e passou a dormir na rua há 1 ano
Reprodução/TV Globo
O que diz a Prefeitura do Rio
A Prefeitura do Rio disse que nos últimos 4 anos criou mais de 1.800 vagas para pessoas em situação de rua em 33 unidades de acolhimento. Segundo a prefeitura, só ano passado foram acolhidas 874 pessoas.
A Prefeitura do Rio também disse que o programa seguir em frente da Secretaria Municipal de Saúde busca a ressocialização da população em situação de rua, mas não respondeu às perguntas sobre a demora no cumprimento e na fiscalização da lei federal que proíbe estruturas hostis pela cidade.