Há um projeto de piscinão na Vila Madalena desde 2002, mas que foi paralisado em 2010 após liminar de moradores contrários ao uso de duas praças para fazer a obra. Prefeitura de SP diz que derrubou a liminar só ano passado e atualizará projeto. ‘Beco do Batman’, na Vila Madalena, foi tomado pela água na última sexta-feira (27).
Acervo pessoal
Um dos pontos turísticos mais visitados da cidade de São Paulo, o Beco do Batman, na Vila Madalena, Zona Oeste, vive dias de apreensão desde que uma enchente de grandes proporções atingiu o local na última sexta-feira (24).
Conforme o g1 publicou, o local foi invadido por uma enxurrada que deixou trabalhadores, empresários e moradores ilhados, impondo enormes prejuízos para quem se estabeleceu no local.
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A água oriunda das áreas mais altas do bairro desaguou na rua Harmonia e na Rua Belmiro Braga, usando o Beco mais famoso da cidade como canal de escoamento. Um idoso de 73 anos morreu nas imediações, após inundar a casa onde ele vivia e tinha seu ateliê de artista plástico.
Por cerca de uma hora, a correnteza ganhou uma força que arrastou carros e alcançou quase 2 metros de altura. O local encheu em apenas 17 minutos de chuva forte no bairro.
Vídeo mostra que Beco do Batman se transformou em rio em apenas 17 minutos
O Instituto Chão, que fica na rua Harmonia e dá costas para o Beco do Batman, foi um dos pontos mais prejudicados. Fundado em 2015, o local vende produtos orgânicos como frutas, legumes e hortaliças de pequenos produtores do estado.
A empresa teve mais de R$ 150 mil em prejuízos com a enxurrada.
A gente fica numa área que até hoje estava protegida, porque fica no início do relevo da Harmonia e nunca tinha sido alvo de enchentes. Mas o acúmulo de água foi tanto que invadiu nossa área. Os prejuízos de produtos começam em R$ 100 mil pelo menos. Mas, contando o tempo que a gente esteve fechado para fazer limpeza, o valor passa de R$ 150 mil.
O lugar fica ao lado de outros comércios que funcionam com comportas para evitar a invasão das enchentes, comuns há décadas nesse trecho da Vila Madalena durante o verão.
É o caso da vidraçaria do Ramiro de Oliveira, que está há mais de 20 anos na rua Harmonia. Apesar das comportas de 1,20 metro de altura, o local também foi invadido pela última enxurrada.
“Até sexta, várias enchentes tinham acontecido aqui na rua, mas nenhuma delas entrou pra dentro por causa das comportas. Mas, agora, ela não deu mais conta e vou ter que subir para 1,80 metro ou 2 metros. Mas o que a gente precisa é uma solução do poder público urgente”, disse.
“Não dá só contar com a sorte no meio desse problema das mudanças climáticas. Meu medo é vir uma enxurrada dessa no meio da noite, quando não tem ninguém aqui, e a gente chegar no outro dia e ver o trabalho e esforço de uma vida inteira embaixo d’água”, afirmou.
Situação semelhante vive o comerciante Adolfo Rodrigo, dono de um sorveteira artesanal dentro do Beco. Mesmo com uma escada de cerca de um metro acima do nível da rua e uma comporta de um metro, a água invadiu a loja dele, dando um prejuízo de mais de R$ 10 mil.
“A enxurrada passou pelas frestas da comporta e também começou a subir pela privada do banheiro. Consegui salvar algumas coisas, mas perdi motor de freezer e muita matéria prima. Sem contar o sábado e o domingo que a gente ficou fechado pra limpar a sujeira”, lembra.
Ele também engrossou o coro pedindo ações da prefeitura. “A gente que é empreendedor não tem apoio de ninguém pra contratar um funcionário, religar a luz. Não dá pra esperar nada do poder público, mas que algo seja feito pelo menos pra gente não chegar no dia seguinte de uma tempestade com tudo prejuízo”, disse.
E acrescentou: “Se eu tomar R$ 10 mil de prejuízo toda semana em toda chuva que cair até março eu não chego lá. Vou à falência antes…”.
Wladimir Novaes e Marco Magri, coordenadores do Instituto Chão, na rua Harmonia: prejuízo de mais de R$ 150 mil com a enchente de sexta (24).
Rodrigo Rodrigues/g1
O que diz a Prefeitura de SP
Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB) disse que trabalha para retomar a construção do piscinão da Vila Madalena brevemente para ajudar no escoamento da água que desce para o Beco de Batman. (Entenda o imbróglio abaixo.)
A pasta também afirmou que a cidade de São Paulo conta, atualmente, com 409 jardins de chuva para evitar enchentes e que a Secretaria das Subprefeituras (SMSUB) realiza a limpeza constante das galerias pluviais da região.
“Somente em 2024, a Subprefeitura Pinheiros realizou a limpeza de 2.313 metros de córregos, além de 8.629 metros quadrados das suas áreas de margens, retirando 135 toneladas de detritos”.
Solução atrasada há 23 anos
Enxurrada atinge Beco do Batman durante chuva desta sexta (24)
Desde 2002, existe um projeto da Prefeitura de SP para a construção de um piscinão na parte alta da Vila Madalena, na região da rua Abegoária. O piscinão seria construído na área onde é atualmente são as praças General Oliveira Álvares e Jacques Bellange.
Porém, os moradores em torno dessas praças ajuizaram uma ação na Justiça contra o uso das duas áreas como piscinão.
Reunido na Associação Amigos Jardim das Bandeiras (AAJB), o grupo obteve uma liminar em 2010, por meio do Ministério Público de São Paulo, que só foi revertida na Justiça pela Prefeitura de SP em fevereiro do ano passado.
Na época da liminar, a referida obra já tinha sido licitada e contratada, inclusive encontrava-se na fase da Licença Ambiental Prévia (LAP), que já tinha sido emitida pela prefeitura.
A Construtora Cappellano Ltda era a empresa que ganhou o certame da época para tocar a obra.
Nesta terça-feira (28), a Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB) informou que o projeto do novo reservatório na Praça General Oliveira Alvares está em fase de atualização, a partir das contribuições colhidas durante audiência e consulta públicas realizadas e entre maio e junho 2024.
“A iniciativa, que discutiu alternativas para o combate às cheias do Córrego Verde, na Zona Oeste, foi possível após a Justiça derrubar, em fevereiro de 2024, liminar que, desde 2010, impedia o avanço das obras”, disse a pasta.
O Ministério Público entrou com recurso no Tribunal de Justiça de SP em julho passado para reverter a decisão favorável à prefeitura.
Segundo o procurador Hamilton Alonso Jr., “o projeto da municipalidade é questionado judicialmente por não ser precedido do essencial Estudo de Viabilidade Ambiental (E.V.A.) e, ainda, de acordo com parecer do engenheiro civil e especialista em drenagem urbana, Júlio Cerqueira Cesar Neto, a construção desse piscinão não representaria a melhor opção técnica para solução das enchentes na região”.
“Além de causar significativos danos ambientais, tem custo muito mais elevado em relação à alternativa proposta (ações nas GAP’s existentes, como reativação da galeria antiga, ampliação dos pontos de captação e reforma da galeria”, disse o promotor.
Os comerciantes Helder Kanamaro e Ramiro de Oliveira exigem retomadas das obras do piscinão da Vila Madalena.
Montagem/g1/Rodrigo Rodrigues
Os moradores e empresários do Beco do Batman entendem o direito dos moradores da AAJB de contestarem o projeto da prefeitura, mas dizem que 23 anos de projeto parado só tem prejudicado quem mora na parte de baixo do bairro.
“O piscinão é uma das soluções para o problema que estamos vivendo aqui embaixo. Pessoas estão morrendo. Não é possível que o bem-estar coletivo dos atingidos todo verão pelas chuvas não seja colocado na frente das disputas”, disse o advogado Helder Kanamaro, dono da principal galeria de arte do Beco de Batman.
“Já tem estudo, projeto, licitação. Uma associação de moradores que vai perder uma praça temporariamente ou ter caminhões na sua porta durante o período de obras não tem direito de se sobrepor à vida das pessoas”, completou.
Rotina de medo
O empresário Marcel Fernandes narrou o drama das duas meninas presas na enchente do Beco do Batman na última sexta-feira (24): ‘Sentimento de impotência pela vida do outro’.
Montagem/g1/Rodrigo Rodrigues
Independentemente do piscinão, os comerciantes da Vila Madalena cobram outras ações da gestão Ricardo Nunes (MDB) para que as enchentes sejam minimizadas.
“A Prefeitura tem que ter expertise e gente capacitada para propor soluções criativas para o problema. Se o piscinão é o melhor caminho, não sei. Mas soluções precisam ser encontradas. O que não pode é assistir às mudanças climáticas afetando a vida das pessoas de braços cruzados”, disse Wladimir Novaes, do Instituto Chão.
Dono de uma loja de roupas e acessórios aberta há quatro meses no Beco do Batman e com entrada também pela Harmonia, Marcel Fernandes diz que não quer passar novamente pelo mesmo que aconteceu na sexta (24).
“A água invadiu a loja pela vitrine, mesmo com comporta e muro de dois metros. Enquanto a gente tirava a água com balde, vim aqui pra trás e ouvi as duas meninas do bar que estavam no meio da correnteza pedirem socorro e gritarem: ‘Ferrou, nós vamos ser arrastadas’. Entrei em desespero por não poder ajudar e fazer alguma coisa por elas”, lembrou.
A loja de Marcel Fernandes tem comporta até na vitrine do lado da rua Harmonia, mas a água da enxurrada invadiu a loja do mesmo jeito na sexta-feira (24).
Rodrigo Rodrigues/g1
“É uma sensação de impotência terrível. Enquanto elas corriam risco de vida, eu estava preso lá dentro da loja, com dois metros de água na minha porta, sem poder ajudar… A água invadia nosso espaço pela vitrine, pelas frestas, e a gente tentando salvar o que podia com o balde. Ninguém quer viver de novo esse pesadelo. Coisa material a gente conquista. A vida ninguém traz de volta”, disse ele.
O grafiteiro Daniel Medeiros, um dos fundadores do Beco do Batman como ele é hoje, também narra a rotina de medo vivida a cada verão. Ele tem um ateliê no beco, além de uma banca onde apresenta seus trabalhos artísticos aos turistas que frequentam o local.
“Estou aqui desde 99 e já vi outras enchentes. Há mais de 20 anos vejo isso acontecer aqui, desde quando ainda não era ponto turístico. Era só onde os artistas de rua se encontravam pra fazer arte. Já teve ano de eu precisar me refugiar no telhado. Mas a chuva de sexta me lembrou os dias mais terríveis”, disse.
“Meu medo é perder mais coisas ainda do que já perdi nesses anos todos. Obras de arte, material de trabalho, trabalhos quase prontos depois de meses de dedicação, encomendas de clientes. Perdi muita coisa, mas ganhei a minha vida. E é ela que preciso zelar daqui pra frente. As pessoas aqui no Beco estão em choque e alguém precisa fazer alguma coisa”, avaliou.
O grafiteiro Daniel Medeiros, um dos fundadores do Beco do Batman, narra a rotina de medo com as enchentes.
Rodrigo Rodrigues/g1