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Nesta quarta-feira (19), o ministro do STF Alexandre de Moraes retirou o sigilo da delação do tenente-coronel Mauro Cid, que foi um dos primeiros atos da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado. Cada trecho dos depoimentos teve de ser confirmado pela Polícia Federal. PGR afirma que Bolsonaro liderou organização criminosa para golpe de Estado; ex-presidente diz que recebe denúncia com estarrecimento e indignação
O ministro do STF – Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, relator da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado, abriu prazo para a defesa dos 34 denunciados na terça-feira (18) pela Procuradoria-Geral da República, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Paulo Gonet dividiu os 34 denunciados em grupos. O núcleo crucial da organização criminosa liderada, segundo a PGR, por Jair Bolsonaro era formado por integrantes do alto escalão do governo federal e das Forças Armadas. Deles partiram as principais decisões e ações de impacto. O segundo núcleo tinha a função de gerenciar as ações elaboradas pela organização e coordenar o emprego das forças policiais para sustentar a permanência ilegítima de Jair Bolsonaro no poder. O terceiro núcleo tinha a função de promover ações táticas para convencer a alta cúpula das Forças Armadas a aderir aos planos golpistas e neutralizar autoridades públicas adversárias. E o quarto núcleo de desinformação e ataques virtuais a instituições e autoridades que ameaçavam a execução do plano golpista.
Na denúncia, o procurador-geral da República não citou onze nomes que estavam no relatório da Polícia Federal, como o do presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, e incluiu quatro pessoas que tinham ficado de fora.
Paulo Gonet dividiu os 34 denunciados em grupos. O núcleo crucial da organização criminosa liderada, segundo a PGR, por Jair Bolsonaro
Jornal Nacional/ Reprodução
O procurador-geral da República também construiu uma linha do tempo de ação dos golpistas. De acordo com a PGR, Jair Messias Bolsonaro inaugurou os seus ataques ao sistema eleitoral brasileiro ainda durante a campanha presidencial de 2018 e persistiu na narrativa infundada de fraude após ser eleito. E para deflagrar o plano criminoso, segundo a PGR, Bolsonaro contou com o auxílio direto de Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional à época, e Alexandre Ramagem, então diretor-geral da Abin, Agência Brasileira de Inteligência.
Segundo a PGR, Ramagem tinha o costume de documentar as orientações que repassava a Bolsonaro. Em um desses arquivos, com o nome “Bom dia Presidente.docx”, de março de 2020, Ramagem relata a criação de um grupo técnico para desacreditar as urnas eletrônicas. A orientação de Ramagem é idêntica à anotação encontrada na agenda de Augusto Heleno, a respeito de plano para descumprir decisões judiciais sensíveis ao grupo. O plano consistia em coagir a Polícia Federal a ignorar as ordens emanadas pelo STF – Supremo Tribunal Federal, com isso, escudando Jair Bolsonaro e a organização criminosa.
A PGR afirma que a estratégia se tornou ainda mais evidente nos discursos públicos de Bolsonaro no dia 7 de setembro de 2021 na Esplanada dos Ministérios e na Avenida Paulista, quando ele insuflou seus apoiadores contra membros do Tribunal Superior Eleitoral e do STF – Supremo Tribunal Federal. Segundo a denúncia, Bolsonaro, com o receio de derrota nas urnas, apresentou de forma explícita a mensagem autoritária de permanência no poder:
“Só saio preso, morto ou com vitória. Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso”.
A PGR também citou uma live feita por Bolsonaro, ainda em 2021, com ataque as urnas eletrônicas: “Os pronunciamentos do denunciado, que até então aparentavam ser pontuais e insuficientes para afetar significativamente a opinião pública, ganharam contornos massivos e contundentes a partir do dia 27 de julho de 2021, quando o então presidente da República realizou a transmissão ao vivo (live) nas dependências do Palácio do Planalto para tratar especificamente do sistema eletrônico de votação”.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, afirma na denúncia que, paralelamente aos discursos de Jair Bolsonaro, a organização criminosa se valia do meio digital para atacar opositores e o sistema eleitoral, usando indevidamente a estrutura de Estado. Em uma ação coordenada, os mesmos alvos dos discursos de Bolsonaro eram atacados com informações falsas nas redes sociais.
Após a denúncia do golpe, relembre as acusações contra Bolsonaro em análise pela PGR
Segundo a PGR, a escalada golpista ficou mais intensa quando o então ex-presidente Lula voltou a ter os direitos políticos.
A denúncia da Procuradoria-Geral da República afirma que, diante da possibilidade de Lula concorrer nas eleições de 2022, o grupo criminoso ampliou as articulações para tentar um golpe de Estado. Segundo a PGR, essa escalada de ataques ganhou impulso mais notável quando Lula, visto como o mais forte na disputa eleitoral de 2022, tornou-se elegível, em virtude da anulação de condenações criminais.
E isso se intensificou ao longo do ano de 2022. Em julho, Bolsonaro convocou uma reunião com embaixadores e criticou o sistema eleitoral. De acordo com a PGR, a reunião aconteceu exclusivamente para que fossem ouvidas palavras de desconfiança e descrédito com relação ao sistema eleitoral eletrônico gerido pelo Tribunal Superior Eleitoral. O discurso, que reiterava outros tantos, reforçou a estratégia da organização criminosa de perturbar a tranquilidade social que deveria ambientar as eleições no sistema democrático.
Conforme as eleições se aproximavam, as informações falsas sobre o sistema de votação continuavam sendo difundidas. Mas, segundo a denúncia, depois do resultado do primeiro turno, com uma perspectiva real de derrota nas urnas, o grupo precisou ampliar a sua frente de ação, mediante o uso ainda mais ostensivo da máquina pública, a fim de interferir diretamente no processo de eleição e assegurar a sua permanência no poder.
Nesse contexto, segundo a PGR, os denunciados se utilizaram especialmente da estrutura da Polícia Rodoviária Federal, sob o comando do denunciado Silvinei Vasques, para obstruir o funcionamento do sistema eleitoral e minar os valores democráticos, dificultando a participação de eleitores que se presumiam contrários ao então presidente.
Depois que Bolsonaro efetivamente perdeu as eleições, de acordo com a denúncia, o grupo estimulou a formação de acampamentos: “São notórias as convocações em redes sociais de um levante contra o Estado de Direito e o governo eleito, dando lugar a ações de fechamento de rodovias em pontos diversos do país e de instalação de acampamentos de pessoas clamando por intervenção militar. Os procedimentos se mostravam coordenados e articulados, nos moldes do almejado pela organização criminosa”.
Quando novembro chegou, segundo a PGR, além de perenizar a narrativa de fraude eleitoral, o grupo deu início à fase mais violenta de seu projeto de poder. No dia 9 de novembro, segundo a denúncia, foi criado e impresso, nas dependências do Palácio do Planalto, o plano denominado “Punhal Verde Amarelo”, para apresentação a Jair Messias Bolsonaro e seu endosso. O plano previa a prisão e até a morte do ministro do STF – Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e dos então candidatos eleitos Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin.
Na introdução da denúncia, Paulo Gonet já havia falado sobre o plano, que seria de conhecimento de Bolsonaro: “Os membros da organização criminosa estruturaram, no âmbito do Palácio do Planalto, plano de ataque às instituições, com vistas à derrocada do sistema de funcionamento dos Poderes e da ordem democrática, que recebeu o sinistro nome de ‘Punhal Verde Amarelo’. O plano foi arquitetado e levado ao conhecimento do presidente da República, que a ele anuiu, ao tempo em que era divulgado relatório em que o Ministério da Defesa se via na contingência de reconhecer a inexistência de detecção de fraude nas eleições”.
Três dias depois, segundo a denúncia, em uma reunião na casa de Braga Netto em Brasília, os denominados “kids pretos” debateram as ações clandestinas enfeixadas sob o nome “Copa 2022”, destinadas a neutralizar o ministro Alexandre de Moraes, nos moldes previstos pelo plano “Punhal Verde Amarelo”. “O colaborador Mauro César Barbosa Cid confirmou a realização da reunião em 12 de novembro de 2022, indicou os participantes envolvidos e resumiu a pauta discutida: promover uma ação de forte impacto social para justificar a assinatura de um decreto por Jair Bolsonaro”.
No dia 19 de novembro, uma semana depois da reunião na casa de Braga Netto, segundo a PGR, Felipe Martins, assessor de Bolsonaro, apresenta a ele termos de um decreto golpista, que seria usado para dar legitimidade a um golpe de Estado.
Em dezembro, com a posse de Lula se aproximando, de acordo com a PGR, o grupo apressou as ações golpistas. No dia 6 de dezembro, o monitoramento do ministro Alexandre de Moraes foi intensificado e Bolsonaro recebeu a primeira versão da minuta do decreto golpista e pediu ajustes.
Segundo a denúncia, o colaborador Mauro Cid confirmou que “Jair Messias Bolsonaro recebeu de Filipe Garcia Martins a minuta de decreto que impunha também a prisão de autoridades, entre elas os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. De acordo com o colaborador, Jair Bolsonaro fez, adiante, ajustes na minuta, submetendo à prisão apenas o ministro Alexandre de Moraes e se limitando à realização de novas eleições presidenciais”.
Segundo a PGR, com o decreto concluído, Jair Bolsonaro iniciou a fase de reuniões com os militares de alta patente. O objetivo era apresentar o documento e obter o apoio necessário. A primeira reunião foi no dia 7 de dezembro. Na ocasião, Jair Bolsonaro, com auxílio de Filipe Garcia Martins Pereira, apresentou a minuta ao general Freire Gomes, ao almirante de esquadra Almir Garnier Santos e ao general e ministro da Defesa Paulo Sergio Nogueira de Oliveira. De acordo com as investigações, Freire Gomes não concordou com o plano.
No dia 9 de dezembro, às 9h32, Mauro Cid enviou mensagem de áudio ao general Freire Gomes informando-o de que Jair Bolsonaro havia “enxugado” o texto do decreto e convocado uma reunião com o general Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, então comandante do Comando de Operações Terrestres. O COTER é o órgão do Exército encarregado de orientar e coordenar o emprego das forças terrestres.
No dia 14 de dezembro, o então ministro da Defesa, Paulo Sergio Nogueira, faz uma nova reunião com os comandantes militares e apresenta uma nova versão do decreto, já com os ajustes feitos por Bolsonaro. De acordo com a denúncia, a reunião tinha o intuito de pressionar novamente os militares a aderirem à insurreição, garantindo, assim, o suporte armado para as medidas de exceção que deveriam ser adotadas.
Segundo a PGR, apesar desses ajustes, o objetivo do decreto era o mesmo: impedir a posse do presidente eleito, marcada para o dia 1º de janeiro de 2023.
Atos antidemocráticos
A denúncia afirma que o grupo controlava os acampamentos em frente aos quartéis que pediam um golpe militar.
No dia 2 de janeiro de 2023, um dia após a posse do presidente eleito, Lula, Jair Bolsonaro recebeu uma mensagem de um militar:
“O plano foi complementado com as contribuições de sua equipe. Aguardamos na esperança de que será implementado. Bom dia. A ‘minha tropa’ continua com ‘sangue nos olhos’. Bom dia. Feliz Ano Novo. Conversa hoje com o Amir. Desmobilizamos a tropa ou permanecemos em alerta?”.
A mobilização no acampamento montado em frente ao QG do Exército, principal palco de manifestações antidemocráticas, foi mantida. Segundo a PGR, “o controle exercido pela organização criminosa sobre as manifestações populares era tão evidente que, em 4 de janeiro de 2023, Mauro Cid já manifestava ciência sobre o ato de violência que ocorreria poucos dias depois. O grupo aguardava o evento popular como a tentativa derradeira de consumação do golpe, tanto que, uma vez iniciadas as ações de vandalismo, Mauro Cid comentou com a sua mulher: ‘Se o Exército brasileiro sair dos quartéis… É para aderir'”.
O procurador-geral Paulo Gonet também aponta que a invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro contou com a fundamental omissão da alta cúpula da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Os relatórios de inteligência já indicavam, dias antes da invasão, a ameaça de atos violentos e da invasão de prédios públicos. A informação crítica, contudo, permaneceu restrita ao círculo mínimo dos denunciados, não alcançando as instâncias que poderiam ter tomado providências eficazes.
A PGR afirma que o então secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, que foi ministro da Justiça do governo Bolsonaro, o secretário executivo da Secretaria de Segurança Pública, Fernando de Sousa Oliveira, e a responsável pela inteligência da secretaria, Marília Ferreira de Alencar, “já haviam aderido aos planos da organização criminosa desde muito antes, o que ficou evidente no pleito eleitoral de 2022, quando em cargos no governo Bolsonaro, coordenaram a utilização indevida da estrutura da Polícia Rodoviária Federal para obstaculizar o trânsito de eleitores a zonas eleitorais em regiões do Nordeste, onde detectaram votação mais expressiva em Lula da Silva”.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, ressaltou que o plano golpista não deu certo porque a alta cúpula do Exército respeitou a Constituição e se posicionou contra a ruptura institucional: “É de ser observado que o próprio Exército foi vítima da conspirata. A sua participação no golpe foi objeto de constante procura e provocação por parte dos denunciados. Os oficiais generais que resistiram às instâncias dos indisciplinados sofreram sistemática e traiçoeira campanha pública de ataques pessoais, que foram dirigidos até mesmo a familiares”.
Os crimes
PGR afirma que Bolsonaro liderou organização criminosa para golpe de Estado; ex-presidente diz que recebe denúncia com indignação
Jornal Nacional/ Reprodução
A PGR denunciou o ex-presidente Bolsonaro e os outros acusados por cinco crimes. Na denúncia, o procurador Paulo Gonet afirmou que a responsabilidade pelos atos lesivos à ordem democrática recai sobre a organização criminosa liderada por Jair Bolsonaro:
“Os delitos descritos não são de ocorrência instantânea, mas se desenrolam em cadeia de acontecimentos, alguns com mais marcante visibilidade do que outros, sempre articulados ao mesmo objetivo: o de a organização, tendo à frente o então Presidente da República Jair Bolsonaro, não deixar o poder, ou a ele retornar, pela força, ameaçada ou exercida, contrariando o resultado apurado da vontade popular nas urnas. O inquérito revela atentado contra a existência dos Três Poderes e contra a essência do Estado de Direito Democrático”.
O documento apontou o núcleo central da ação: integrantes do alto escalão do governo e das Forças Armadas formaram o núcleo crucial da organização criminosa:
Jair Bolsonaro;
Alexandre Ramagem, o ex-diretor-geral da Abin;
Almirante da reserva Almir Garnier Santos, que comandava a Marinha;
o ex-ministro da Justiça Anderson Torres;
Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional;
Paulo Sérgio Nogueira, ex-comandante do Exército e ex-ministro da Defesa;
Braga Netto, que foi ministro da Casa Civil e da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro à reeleição.
Jair Bolsonaro e aliados foram denunciados por organização criminosa armada, que prevê pena de três a oito anos de prisão. A PGR ressaltou que “a natureza estável e permanente da organização criminosa é evidente em sua ação progressiva e coordenada, que se iniciou em julho de 2021 e se estendeu até janeiro de 2023. As práticas da organização caracterizaram-se por uma série de atos dolosos ordenados à abolição do Estado Democrático de Direito e à deposição do governo legitimamente eleito”.
A denúncia aponta outros quatro crimes:
Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, que prevê de quatro a oito anos de prisão. A denúncia destacou que a decisão dos generais, especialmente dos que comandavam regiões, e do comandante do Exército de se manterem no seu papel constitucional foi determinante para que o golpe, mesmo tentado, mesmo posto em curso, não prosperasse. Mas, crime houve, pondera o PGR Paulo Gonet, citando artigos do Código Penal que tipificam atentado contra as instituições democráticas. A tentativa é o fato punível descrito na lei. Ainda segundo o documento, os denunciados minaram em manobras sucessivas e articuladas os poderes constitucionais diante da opinião pública e incitaram a violência contra as suas estruturas. As instituições democráticas foram vulneradas em pronunciamentos públicos agressivos e ataques virtuais, proporcionados pela utilização indevida da estrutura de inteligência do Estado. O ímpeto de violência da população contra o Poder Judiciário foi exacerbado pela manipulação de notícias eleitorais baseadas em dados falsos. Ações de monitoramento contra autoridades públicas colocaram em risco iminente o pleno exercício dos poderes constitucionais;
Golpe de Estado: tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. A pena vai de quatro a 12 anos de prisão. De acordo com o PGR, a organização criminosa seguiu todos os passos necessários para depor o governo legitimamente eleito;
Dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, com pena de seis meses a três anos de prisão;
E deterioração de patrimônio tombado, com um a três anos de reclusão. O documento pontua que as ações delituosas não se esgotaram nos danos às instalações do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto. A pretensão do grupo criminoso integrado pelo denunciado Jair Bolsonaro era a de abalar o exercício dos Poderes, mediante a prática reiterada de delitos, até que se pudesse consolidar o regime de exceção.
A acusação contra o ex-presidente Bolsonaro e aliados será julgada pela Primeira Turma do STF – Supremo Tribunal Federal, formada pelos ministros Cármen Lúcia, Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cristiano Zanin, que é o presidente do colegiado. A data do julgamento será marcada por Zanin após o relator Alexandre de Moraes liberar o caso para análise. Não há prazo. Se a denúncia for aceita, os acusados viram réus e passam a responder pelos crimes.
Delação Mauro Cid
Mauro Cid e pai repassaram US$ 78 mil após venda das joias a Jair Bolsonaro, indica delação
O ministro Alexandre de Moraes retirou nesta quarta-feira (19) o sigilo da delação premiada de Mauro Cid.
A delação do tenente-coronel Mauro Cid foi um dos primeiros atos da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado. O que o militar disse nos depoimentos foi um ponto de partida, e cada trecho, segundo a Polícia Federal, teve que ser confirmado pelas investigações. O ministro Alexandre de Moraes afirmou em despacho que decidiu levar a delação a público por considerar que, após o oferecimento da denúncia pela Procuradoria-Geral da República, não havia mais razão para manter o sigilo.
Os depoimentos de Mauro Cid trazem detalhes reveladores dos fatos investigados ao longo do inquérito pela PF. Por exemplo, como foram, na versão apresentada por Cid, as reuniões do então presidente Jair Bolsonaro com aliados e com a cúpula das Forças Armadas para discutir medidas para permanecer no poder e impedir a posse de Lula.
O ministro Alexandre de Moraes retirou nesta quarta-feira (19) o sigilo da delação premiada de Mauro Cid
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Na delação, Mauro Cid disse que as pessoas que visitavam o então presidente formavam três grupos distintos. Um grupo bem conservador, de linha bem política, que aconselhava o presidente a mandar o povo que estava acampado em frente a quartéis do Exército para casa. Cid disse que faziam parte desse grupo, por exemplo, o senador Flavio Bolsonaro, filho do então presidente, e o senador Ciro Nogueira, então ministro da Casa Civil.
Segundo Mauro Cid, outro grupo era formado por pessoas moderadas, que, apesar de não concordarem com o caminho que o Brasil estava indo, entendiam que nada poderia ser feito diante do resultado das eleições e que qualquer coisa em outro sentido seria um golpe armado. Esse grupo, de acordo com a delação, era subdividido entre generais da ativa que tinham mais contato com Bolsonaro, como por exemplo o general Freire Gomes, então comandante do Exército, e entre aqueles que defendiam que Bolsonaro devia sair do país.
Por fim, havia um terceiro grupo denominado por Mauro Cid como “radicais”, que também era dividido em dois grupos. Os “menos radicais” queriam achar uma fraude nas urnas. Mauro Cid disse que integravam essa ala, por exemplo, o deputado Eduardo Pazuello, general da reserva e ex-ministro da Saúde de Bolsonaro, e Valdemar Costa Neto, presidente do PL. Já o segundo grupo de “radicais”, segundo Cid, era a favor de um braço armado, que gostariam de alguma forma incentivar um golpe de Estado e que queria que Bolsonaro assinasse o decreto do golpe. De acordo com a deleção, não era um grupo organizado, mas pessoas que se encontravam esporadicamente com Bolsonaro. Entre elas, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, e a ex-primeira-dama Michele Bolsonaro.
Mauro Cid confirmou que o assessor Filipe Martins levou a Bolsonaro uma minuta com um decreto golpista que determinava diversas ordens, que prendia todo mundo; e que o ex-presidente recebeu o documento, leu e alterou as ordens, mantendo apenas a prisão do ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições devido à fraude no pleito.
Segundo a delação, a nova minuta foi apresentada por Bolsonaro aos então comandantes das Forças Armadas no Palácio da Alvorada para pressionar as Forças Armadas, para saber o que estavam achando da conjuntura. Segundo as investigações, o almirante Garnier Santos, então comandante da Marinha, aceitou participar do plano golpista e colocou tropas à disposição. Já o general Freire Gomes, comandante do Exército, e o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, se negaram a participar da trama. Cid disse que Freire Gomes ficou irritadíssimo quando o almirante colocou as tropas à disposição do golpe.
Sobre Freire Gomes, Mauro Cid afirmou ainda que ele não concordava com como as coisas estavam sendo conduzidas; no entanto, entendia que não caberia um golpe de Estado, pois as instituições estavam funcionando; que não foi comprovada fraude nenhuma; e que não cabia às Forças Armadas realizar o controle constitucional. Segundo Mauro Cid, Freire Gomes dizia que estavam “romantizando” o art. 142 da Constituição e que tudo que acontecesse seria um regime autoritário pelos próximos 30 anos, decorrente de um golpe militar.
Cid disse ainda que o ex-presidente teve várias reuniões com os generais e que não queria que o pessoal saísse das ruas porque tinha certeza que encontraria uma fraude nas urnas eletrônicas e, por isso, precisava de um clamor popular para reverter a narrativa.
Cid também afirmou que o general Freire Gomes já havia manifestado previamente que não faria nada; que o general confirmou sua posição contrária na reunião. Cid foi indagado ainda se tomou conhecimento que na referida reunião do dia 14 de dezembro de 2022 foi ratificado o posicionamento do general Freire Gomes de que não aderiria a nenhum intento de golpe de Estado. Mauro Cid respondeu que sim.
O tenente-coronel Mauro Cid também deu detalhes sobre fatos investigados em outros inquéritos. Sobre as fraudes em cartões de vacinação, Cid disse que o ex-presidente Jair Bolsonaro deu a ordem para fazer os cartões dele e da sua filha, que o objetivo era obter os cartões de vacina para qualquer necessidade; e que imprimiu os certificados de vacina e entregou em mãos para o ex-presidente. Bolsonaro já foi indiciado pela Polícia Federal nessa investigação.
Outra revelação feita por Mauro Cid na delação foi sobre a venda de kits de joias e relógios recebidos pelo ex-presidente como presentes dados a ele enquanto representante do Estado brasileiro
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Outra revelação feita por Cid na delação foi sobre a venda de kits de joias e relógios recebidos pelo ex-presidente como presentes dados a ele enquanto representante do Estado brasileiro. Segundo o militar, Bolsonaro solicitou que ele realizasse a venda do kit ouro branco e dos relógios Rolex e Patek Philippe; e que apenas ele e o ex-presidente sabiam das tratativas das vendas desses itens. As duas vendas foram feitas nos Estados Unidos.
Mauro Cid disse que efetivou a venda dos referidos relógios pelo montante de US$ 68 mil e que o pagamento foi realizado na conta bancária de seu pai, Mauro Cezar Lourena Cid. O militar revelou que efetuou a venda das demais joias em um centro especializado na cidade de Miami pelo valor de US$ 18 mil e que o pagamento foi realizado em espécie, sem emissão de nota. Segundo Cid, o dinheiro foi entregue a Bolsonaro quando ele retornou ao Brasil, de forma fracionada.
Cid também revelou que as motociatas promovidas por Jair Bolsonaro durante o mandato eram financiadas com recursos públicos. Ele disse que, a partir do momento que o ex-presidente decidiu andar de moto, o GSI teve de comprar motos similares à do ex-presidente para poder acompanhá-lo e que acredita que os gastos com as motos e seu transporte eram pagos, também, com o cartão corporativo. Afirmou ainda que os gastos de hospedagem e alimentação dos servidores que faziam a segurança do presidente nas motociatas eram arcados com o uso do cartão corporativo.
Cid também revelou que as motociatas promovidas por Jair Bolsonaro durante o mandato eram financiadas com recursos públicos
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Cid também revelou que o monitoramento do ministro Alexandre de Moraes foi um pedido do próprio ex-presidente Jair Bolsonaro e que o general da reserva Braga Netto entregou a ele – Mauro Cid – dinheiro vivo no Palácio da Alvorada para essa ação de monitoramento. Na delação, ele afirmou:
“Então, o general Braga Netto me entregou o dinheiro. Eu tenho quase certeza que foi no Alvorada, até me lembro que eu botei na minha mesa ali na biblioteca do Alvorada e depois o De Oliveira veio buscar o dinheiro comigo no próprio Alvorada”.
De Oliveira é o major Rafael de Oliveira, que, segundo a PGR, dias depois, começou a seguir o ministro do Supremo.
Em outro depoimento, Mauro Cid afirmou que o relatório das Forças Armadas sobre as urnas concluiu que não houve fraude no sistema eleitoral, mas que Bolsonaro não aceitou a conclusão e que, por isso, o Ministério da Defesa alterou o documento por “determinação e insistência de Bolsonaro”. Mas ainda assim, por falta de qualquer prova, o texto afirma apenas que não era possível dizer que não houve fraude.
Ao decidir contar o que sabia, o tenente-coronel informou quais benefícios queria em troca da colaboração:
perdão judicial ou, em caso de condenação, pena não superior a dois anos;
restituição de bens e valores apreendidos;
extensão dos benefícios da delação para o pai dele, a esposa e a filha;
e que a Polícia Federal garantisse a segurança dele e de seus familiares.
Todos os benefícios serão definidos ao final do processo, quando a efetividade da colaboração será avaliada.
O Ministério da Defesa afirmou que a denúncia da Procuradoria-Geral da República é importante para distinguir as condutas individuais da conduta das Forças Armadas, e que que a avaliação do ministro José Múcio Monteiro é de que a apresentação da denúncia é mais um passo para se buscar a responsabilização correta, livrando as instituições militares de suspeições equivocadas.
Lula
O presidente Lula se manifestou sobre a denúncia da PGR
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O presidente Lula se manifestou sobre a denúncia da PGR:
“A decisão de ontem é uma decisão da Procuradoria-Geral da República. Ele indiciou as pessoas. Eu não vou comentar um processo que está na Justiça. A única coisa que eu posso dizer é que nesse país, no tempo em que eu governo o Brasil, todas as pessoas têm direito à presunção de inocência. Se eles provarem que não tentaram dar golpe e se eles provarem que não tentaram matar o presidente, o vice-presidente e o presidente Superior Tribunal Eleitoral, eles ficarão livres e serão cidadãos que poderão transitar pelo Brasil inteiro. Olha, se na hora que o juiz for julgar, chegar à conclusão de que eles são culpados, eles terão que pagar pelo erro que cometeram. Portanto, é apenas um indiciamento. O processo agora vai para a Suprema Corte, e eles terão todo o direito de se defender. É só isso. Não posso comentar mais nada do que isso”.
Bolsonaro
Jair Bolsonaro negou qualquer envolvimento em qualquer plano golpista. O ex-presidente foi notificado pessoalmente na sede do PL do início do prazo para apresentar a sua defesa ao Supremo.
Horas depois da apresentação da denúncia, a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro disse, em nota, que recebia com estarrecimento e indignação a denúncia da Procuradoria-Geral da República por uma suposta participação em um alegado golpe de Estado; que o presidente jamais compactuou com qualquer movimento que visasse a desconstrução do Estado Democrático de Direito ou as instituições que o pavimentam.
“A despeito dos quase dois anos de investigações – período em que foi alvo de exaustivas diligências investigatórias, amplamente suportadas por medidas cautelares de cunho invasivo, contemplando, inclusive, a custódia preventiva de apoiadores próximos -, nenhum elemento que conectasse minimamente o presidente à narrativa construída na denúncia foi encontrado”.
Afirmou ainda que “não há qualquer mensagem do presidente da República que embase a acusação, apesar de uma verdadeira devassa que foi feita em seus telefones pessoais”; que “a inepta denúncia chega ao cúmulo de lhe atribuir participação em planos contraditórios entre si e baseada em uma única delação premiada, diversas vezes alterada, por um delator que questiona a sua própria voluntariedade. Não por acaso ele mudou sua versão por inúmeras vezes para construir uma narrativa fantasiosa”.
Por fim, a defesa afirma que “o presidente Jair Bolsonaro confia na Justiça e, portanto, acredita que essa denúncia não prevalecerá por sua precariedade, incoerência e ausência de fatos verídicos que a sustentem perante o Judiciário”.
O senador Flávio Bolsonaro, do PL, filho do ex-presidente, chamou a denúncia de absurda:
“Eu lamento muito que o Paulo Gonet tenha ido por essa linha de ter uma atuação política em um órgão que é técnico”.
O vice-presidente da Câmara, Altineu Cortes, do PL, questionou se houve uma tentativa de golpe:
“Nós vamos contrapor a cada linha dessa denúncia e mostrar a verdade. Eu defendo o diálogo entre as instituições, eu defendo a justiça, eu tenho fé em Deus que a verdade vai prevalecer, e nós vamos contrapor cada linha dessa denúncia”.
Coube aos líderes fazer as declarações e ler o texto escrito sob a orientação de Bolsonaro. O manifesto foi no Salão Verde da Câmara
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Nesta quarta-feira (19) cedo, Bolsonaro reuniu aliados no apartamento do líder do PL, deputado Coronel Zucco. Foi nesse encontro que Bolsonaro alinhou o discurso da oposição. Mas ele não falou com a imprensa – saiu pela garagem do prédio. Coube aos líderes fazer as declarações e ler o texto escrito sob a orientação de Bolsonaro. O manifesto foi no Salão Verde da Câmara. Parlamentares chamaram a denúncia de peça de ficção; afirmaram que políticos de direita têm sido perseguidos e pediram a votação do projeto que anistia os acusados pelos atos de 8 de janeiro.
O líder do PL, senador Rogério Marinho, disse que o processo que investiga Bolsonaro é inconstitucional e que a sociedade brasileira precisa de mais justiça.
“Estamos vivendo, eu diria da distopia que o Brasil passa, onde claramente há uma hipertrofia de um poder sobre os demais. Eu diria até uma invasão de direitos fundamentais e constitucionais dos cidadãos brasileiros. Nós afirmamos que esse processo é inconstitucional. Primeiro porque atenta contra a dignidade das pessoas, do cidadão, contra o ordenamento jurídico, contra o princípio do juiz natural, contra o princípio da dignidade humana, contra a liberdade de expressão e de opinião. Nós, senhores deputados e sociedade, não somos favoráveis a depredação, ao vandalismo, a invasão de prédios públicos. Nós achamos que quem fez e foi provado através da individualização das culpas, deve ser responsabilizado. Mas não com 17 anos, mas não com 14 anos, mas não com 15 anos. Por isso, peço que reflitam a respeito do que estamos conversando aqui e da necessidade de entenderemos que a sociedade brasileira precisa, sim, de pacificação, precisa, sim, de conciliação. Mas precisa, sobretudo, de justiça”.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, disse nesta quarta-feira (19) que o projeto sobre anistia não é o assunto dos brasileiros.
“Isso não é um assunto que estamos debatendo. Quando a gente fala desse assunto todo instante, a gente está dando de novo a oportunidade de nós ficarmos na nossa sociedade dividindo o assunto que não é o assunto dos brasileiros”.
O advogado de Braga Netto disse que a denúncia é fantasiosa, a delação de Mauro Cid mentirosa e que vai requerer a soltura de seu cliente:
“Nós vamos, evidentemente, pedir a liberdade do general Braga Netto, e nós vamos mostrar com documentos, com argumentos, que a colaboração apresentada pelo senhor Cid é mentirosa. Uma pessoa que prestou onze depoimentos, uma hora fala uma coisa, uma hora fala outra. Uma pessoa que foi gravada dizendo que disse o que a polícia queria que ela dissesse. Qual a validade dessa colaboração?”, diz José Luis Oliveira Lima, advogado do general Braga Netto.
Os outros denunciados
Alexandre Ramagem disse que não houve movimento contra o Estado Democrático de Direito quando Bolsonaro estava no poder ou depois; que suposições e ilações não têm valor probatório; e que a denúncia é uma perseguição política.
A defesa de Filipe Martins afirmou que não há comprovação de uma minuta; repudiou as acusações da PGR; e afirmou que não há nenhuma conduta ilegal concreta atribuível a ele.
O advogado de Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira disse que só vai se manifestar nos autos.
A defesa de Wladimir Matos Soares afirmou que a denúncia não esclarece a relação entre os denunciados e o 8 de janeiro e que Wladimir está sendo submetido a uma injustiça descabida e ilegal.
Os advogados de Anderson Torres, Rafael Martins de Oliveira e Ailton Gonçalves Moraes Barros disseram que ainda estão avaliando a denúncia.
As defesas de Mauro Cid e Augusto Heleno ainda não se pronunciaram.
O advogado de Almir Garnier declarou que ainda vai ler a denúncia e que, em seguida, vai exercer o contraditório.
A defesa de Marcelo Câmara afirmou que a denúncia não é uma sentença condenatória.
O advogado de Rodrigo Bezerra de Azevedo afirmou que a denúncia não tem base constitucional e que já apresentou provas da inocência do cliente.
A defesa de Ronald Ferreira de Araújo Júnior disse que vai comprovar a inocência do cliente e que ele não participou dos supostos crimes denunciados.
Paulo Renato de Oliveira disse que agentes públicos se utilizam de suas posições para perseguir opositores políticos.
O Jornal Nacional não conseguiu contato ou não teve respostas dos demais citados.
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