Novos registros evidenciam a proliferação de lontras leucísticas em Aquidauana, MS


Mutação genética rara, que antes parecia isolada, está se espalhando entre os indivíduos da região. Lontra leucística registrada em novembro de 2024
Samuel Betkowski
No começo de novembro de 2024, um registro feito pelo fotógrafo de natureza Samuel Betkowski mostra uma ocorrência rara, mas que se proliferou e criou raízes em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul.
Uma lontra-neotropical (Lontra longicaudis) leucística foi avistada às margens do rio Aquidauana, chamando a atenção não apenas por sua beleza incomum, mas pelo fato de não estar sozinha nessa condição.
O leucismo é o termo usado para mutações genéticas que resultam na perda parcial da pigmentação do corpo e, diferente do albinismo, raramente afeta as partes sem pelos (como o nariz, pés e a pele exposta) e nunca afeta os olhos.
Filhote leucístico visto ao lado de um adulto de coloração normal
Samuel Betkowski
Esse não foi o primeiro registro de um indivíduo leucístico na região. A primeira documentação ocorreu em 2019, quando um indivíduo de pelagem quase branca foi avistado e fotografado. O achado foi considerado um evento isolado, uma raridade genética sem grandes indícios de que outros animais com a mesma característica pudessem surgir.
Na época, existiam casos relatados na Escócia, com outra espécie de lontra. No Brasil, tínhamos conhecimento de apenas uma, no Parque Zoobotânico de João Pessoa, segundo o oceanógrafo Oldemar Carvalho.
Três anos depois, em 2022, a raridade ganhou um novo capítulo quando moradores e turistas que visitavam o rio Aquidauana tiveram a chance de observar não apenas uma, mas três lontras de coloração clara. A lontra leucística, já conhecida na região desde 2019, foi vista acompanhada de dois filhotes que apresentavam a mesma mutação genética.
Lontra leucística registrada em 2022
Mariana Bertrand
O registro feito por Samuel em 2024 trouxe ainda mais evidências de que a mutação segue presente na população local. O que torna essa observação ainda mais interessante é o fato de o filhote ter sido visto ao lado de um adulto de coloração normal, algo inédito até então nos registros da região.
A recorrência dessa mutação genética ao longo dos anos levanta uma questão intrigante: por que as lontras de coloração pálida estão se tornando cada vez mais comuns ali? Pesquisadores apontam para uma combinação de fatores que favorecem a permanência desses animais, tornando o rio Aquidauana um cenário único para esse fenômeno.
“O leucismo é uma mutação genética rara e recessiva que se manifesta quando um indivíduo herda o gene alterado de ambos os pais. Se a população local for pequena ou relativamente isolada, há maior probabilidade de endogamia, favorecendo a persistência dessa característica”, explica Gabriel Brutti, biólogo do Projeto Ariranhas.
Segundo Gabriel, o ambiente pode influenciar a sobrevivência desses indivíduos. Diferente do albinismo, o leucismo não compromete a visão, e em certos contextos, como águas turvas e variações de luz na vegetação ribeirinha, a camuflagem pode ser menos comprometida. Se a pressão de predação for baixa, indivíduos leucísticos podem estar na população sem desvantagens significativas.
Lontra leucística flagrada com dois filhotes no MS em 2022
Divulgação/Pousada Aguapé
“Há registros em outras partes do mundo, mas são extremamente raros. A mutação genética que causa o leucismo foi observada em outras espécies de lontras nos Estados Unidos, Canadá e em algumas regiões da Europa. No Brasil, fora do Rio Aquidauana, não há muitos registros documentados dessa condição, o que torna o caso do Aquidauana particularmente notável”, diz Caroline Leuchtenberger, bióloga, pesquisadora e fundadora do Projeto Ariranhas.
As lontras leucísticas do rio Aquidauana são um interessante estudo de caso, devido às observações recorrentes nos últimos anos. Isso sugere que, na região, pode haver uma combinação de fatores genéticos e ambientais que favorecem a manutenção dessa mutação rara, algo que não é tão comum em outras populações, onde o leucismo tende a ser um fenômeno mais esporádico.
“Acreditamos que o principal fator para a frequência de leucismo nesta população é o fato de que esta característica não parecer ser desvantajosa para os indivíduos. Ou seja, as lontrinhas leucísticas conseguem sobreviver e se reproduzir, transmitindo essa característica genética para os seus descendentes”, informa a pesquisadora.
Consequências da condição
O leucismo pode impactar na camuflagem e aumentar a vulnerabilidade desses indivíduos a predadores. Apesar disso, parece que a pressão de predação nessa área não está afetando essas lontras leucísticas.
De acordo com Gabriel, as características do ambiente, como as águas turvas do rio e a vegetação ripária densa, podem minimizar as desvantagens da falta de camuflagem. Essas condições podem tornar mais difícil para predadores visualizarem as lontras, permitindo que os indivíduos leucísticos sobrevivam sem serem facilmente detectados.
Primeira lontra leucística registrada em 2019
Frank Gnaase/Arquivo Pessoal
“A mutação leucística pode, sim, representar um risco potencial a longo prazo para a população, dependendo de como a dinâmica genética e ambiental evoluirão ao longo do tempo. Embora, no presente, as lontras leucísticas estejam conseguindo se adaptar ao ambiente e sobreviver, certos fatores podem se tornar problemáticos no futuro”, elucida Gabriel Brutti.
O biólogo explica que o efeito da endogamia – acasalamento entre indivíduos aparentados – pode ser um risco. Com uma população reduzida e isolada, a continuidade do cruzamento entre parentes pode levar à perda de variabilidade genética, o que enfraquece a saúde geral da população.
Isso pode resultar em uma maior predisposição à doenças genéticas ou a uma redução na capacidade de adaptação a mudanças ambientais. A persistência de características recessivas, como o leucismo, pode também diminuir a resistência a certos fatores ambientais ou patológicos.
“Outro fator importante é a possível perda de adaptação local. Se a mutação leucística se tornar predominante na população e essa característica se tornar desvantajosa em determinados contextos, a falta de diversidade genética poderia prejudicar a adaptação das lontras a futuros desafios ecológicos, como mudanças climáticas ou novas pressões predatórias”, afirma o biólogo.
Embora a mutação leucística não seja necessariamente um problema imediato, sua manutenção em uma população pequena e isolada pode representar riscos a longo prazo. O monitoramento desses indivíduos é essencial para compreender melhor sua dinâmica populacional, os padrões de herança genética e sua adaptação ao ambiente.
A sobrevivência das lontras-neotropicais está diretamente ligada à conservação de seus habitats aquáticos, à qualidade da água e à proteção das matas ciliares. No entanto, ameaças como poluição, desmatamento e caça ilegal continuam representando riscos significativos para a espécie.
*Texto sob supervisão de Lizzy Martins
VÍDEOS: Destaques Terra da Gente
Veja mais conteúdos sobre a natureza no Terra da Gente
Adicionar aos favoritos o Link permanente.