
Reconhecimento histórico foi dado pela interpretação do Rei Lear, famoso personagem de Shakespeare que dá nome à peça encenada em 2024, em São Paulo. Alexia Twister se tornou a primeira drag queen a receber o prêmio Shell de teatro, pela peça ‘Rei Lear’
Matheus José Maria/Divulgação
“Eu subi no palco e olhava: eu tô aqui mesmo? Passa por muitas camadas de lugares onde você aprendeu que não pode estar”, diz Alexia Twister, a primeira drag queen a receber o Prêmio Shell, um dos mais tradicionais do teatro brasileiro.
O reconhecimento histórico na 35ª edição, realizada na última terça-feira (18) foi pela interpretação do Rei Lear, famoso personagem de Shakespeare. Ele dá nome à peça encenada em 2024, em São Paulo, com um elenco só de drags.
Alexia venceu o prêmio de melhor ator pelo júri paulista — o Shell também premia, em separado, peças que ficam em cartaz do Rio de Janeiro.
Com 29 anos na arte drag, e mais de 30 no teatro, a artista dedicou o prêmio ao elenco e “a todas as que vieram antes, que apanharam, que morreram, para que eu estivesse aqui”.
E por que melhor ator, e não atriz? “Não sou mulher cis, não poderia concorrer como mulher”, explica. Quem dá vida a Alexia é o ator Matheus Miranda.
Alexia é uma das drags mais conhecidas da atualidade no país. Em 2020, foi coapresentadora de um reality show com Gloria Groove, na Netflix.
No teatro, Matheus interpreta os personagens a partir da drag. E fazer um rei que enlouquece ao ser enganado pelas filhas, dentro de uma persona drag, foi o maior desafio da sua longa carreira.
“Ir pelo lado do humor e do escracho seria muito fácil. Mas não queriam que fosse um Snatch Game”, conta, se referindo a um quadro do reality “Ru Paul’s Drag Race” em que as drags se vestem como algum famoso para responder a perguntas de um jogo e fazer Ru Paul rir.
“Eu estava com um problema muito sério de entender Alexia ali”, revela. A saída foi recorrer a elementos que trouxessem a drag para o rei: salto, saia, leque…
Mesmo assim, Lear despejou uma imensa carga emocional em Alexia. “Na mesma frase, ele fica lúcido e enlouquece em questão de segundos. Vai e volta, vai e volta… o liga-desliga estava sendo muito pesado para mim.”
Alexia Twister (à dir) em cena de “Rei Lear” com Thelores Drag
Divulgação
“Num dado momento, o João Mostazo (dramaturgo e assistente de direção da peça) disse a frase que norteou meu caminho”, conta. “É uma personagem de 400 anos, ela tem uma carga emocional muito grande. Mas o que ela tira emocionalmente de você, ela devolve em glória.”
O que vem depois da glória
Horas depois da cerimônia de premiação no Rio, Alexia voltou para São Paulo, para fazer o Drags de Quarta. É uma noite semanal de brincadeiras e entretenimento na Casa Fluida, ao lado de Thelores Drag.
No dia seguinte, quando conversou com o g1, se preparava para ensaiar na Blue Space, boate onde Alexia faz shows de dublagem e dança há 20 anos. É uma atividade que ela não pensa em abandonar, mesmo com o sucesso em outros palcos.
“Esse lugar da boate foi o nosso lugar possível durante muito tempo”, resume. “E ainda é o nosso principal canal de comunicação com o público.”
“Acho importante que (esse lugar) exista e continue. Talvez uma menina que esteja começando agora vá falar: ‘Ah, a Alexia faz show em boate, é legal fazer show em boate’, sabe?”.
Quando saíram os concorrentes ao Shell, Alexia estava na rodoviária de São José dos Campos (SP), cidade onde começou como drag, se preparando para retornar para São Paulo.
Antes de receber o telefonema que a informou da indicação, ela estava lembrando dos tempos em que ia para a capital paulista para fazer shows “só com o dinheiro de ida”.
O prêmio no teatro, segundo Alexia, não vai mudar nada do dia para a noite, mas tem um impacto importante para a arte.
“Consegue ajudar não só na visibilidade do meu trabalho, mas também de outras drag queens. As pessoas começam a entender que o lugar do teatro ou da TV é um lugar possível pra gente”, diz.
“Temos visto esse movimento já de alguns anos pra cá, com a Pabllo (Vittar), com a Gloria (Groove), agora com a Greg (Queen, vencedora de um reality internacional dos mesmos produtores de ‘Ru Paul’s’)”, recorda.
“Porém, aqui embaixo, a gente que tá no corre — não que elas não estejam, mas a gente que tá fazendo show em boate ainda vê que isso não tem muito valor. Eu digo pelo valor dos cachês, condições de trabalho.”
“Não acho que os nossos cachês vão aumentar agora (com o prêmio), não acho que a gente vai ser convidada a estrelar uma novela… Talvez isso seja um ‘oi, gente, estamos aqui’.”
Montagem de ‘Rei Lear’ foi feita com elenco formado apenas por drag queens em 2024 e estará no próximo Festival de Curitiba
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Ingressos esgotados
“Rei Lear” tem feito apresentações no Sesc em cidades do interior de São Paulo, depois da temporada com ingressos esgotados no Sesc Consolação e em um teatro da Prefeitura. No fim do mês, participará do Festival de Curitiba: foi a segunda peça a esgotar os ingressos, comemora Alexia.
Também fazem parte do elenco as drags Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Mercedez Vulção, Thelores, Xaniqua Laquisha e Maldita Hammer, que também assina os figurinos. A direção é de Inês Bushatsky.
“A gente está construindo algo de que, talvez, não tenha consciência. Quem sabe, daqui a 15 anos, a gente olhe para trás e entenda que vivemos uma transformação”, reflete.
Durante a entrevista, sempre que falava o nome de Alexia, a artista acabava “despertando” o aparelho que tem a assistente virtual do Google, em sua casa. Ela gosta de programar recados no alto-falante. E contou um deles.
“Se monta: você nasceu bonita, não rica”, costuma dizer Alexa para Alexia.
Boate de SP, referência na arte drag queen, completou 25 anos em 2021